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A CHUVA

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O novo barraco conquistado em um canto distante. O beijo na filha. O café da manhã. A rua descalça. A encosta do morro. Uma vereda calada. No ônibus do trampo. O rádio que fala. A notícia que soa. O trajeto que segue. A chuva. A chuva que cai. A chuva que cai e cai. A notícia que chega pelo rádio do ônibus. A Baixa do Tubo. O tubo alagado. O barraco no chão. A filha...a filha...O lençol sobre o caso encerrado. O sonho lavado em gotas de lágrimas secas de um tempo úmido. O corpo pequeno, gelado, findo sobre o chão lodoso. A lama forte soberba tomara o que era seu. A chuva continuava fria. A vereda impiedosa e voraz cantarolava um rio de desculpas para justificar sua passagem com sofreguidão. Hoje não iria trabalhar. Amanhã também não.
Por Djalma Jacobina Neto

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DON'T CRY FOR ME

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Era na esquina onde se achava o bandoneón, os olhares penetrantes, o batom carmim, Juanita Menéndez, o La cumparsita brilhando na noite baiana. Na mesa, uma figura, um tímido a esperar repetidamente, a buscar sempre a uma mulher, uma única, a que mora no tango, que nunca acha nos colos das outras, nem no fundo dos copos. Pobre Hombre, deu seu coração a uma mujer e ela o guardou numa gaveta do seu camarim.
Depois de muitas estrofes repetidas, duas paradas na noite, Juanita Menéndez com seu colo enrugado anunciou o noivado e a partida. No meio da boate, um coração parou, um corpo desfaleceu e a voz de Gardel foi estancada. Era uma figura assídua aqui na boate, se ouviu dizer.

Por Emanuelle Chagas
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BEM TE VI



Naquela manhã de sábado não havia acordado bem; uma rede de águas fluía em sua cabeça. Já não era tão assim a paz que pensava ter; as palavras lhe vinham ferinas e sem nexo. Ao lado, a mulher dormia no conforto do ar-condicionado. A vida...a vida que o tempo lhe rapinava. Filhos crescidos mundo afora e a razão perdida de ser. Ele ansioso por algo mais. O que poderia saciar aquela angústia de existir? A dor de cabeça incomodava... um analgésico já não servia; não era uma dor precisa, era uma dor do tempo. Levantou-se e cobriu a filha mais nova. Tentou se explicar pelo nada que acontecia sempre para si. Havia o amor em firulas dobradas; mola de geração ou algo de vida? Já era cúmplice da existência; contrato feito na juventude. Construíra uma vida e hoje era prisioneiro do seu próprio desconhecer no passado. Passos solenes caminhados com uma soberba ilusória. Agora ali, a espera de quê? Dor atroz, não física; uma dor de vazio, de completude vazia. Pensou em trocar o carro novo por um mais imponente. Já havia feito isso várias vezes; a que o levava a imponência do carro? Planejou, também, trocar o belo apartamento por aquele mais moderno e luxuoso...a mulher já havia lhe realçado a importância de se ter qualidade de vida. Piscina com raia, espaço fitness, brinquedoteca, movie room, espaço gourmet, solarium...Mais tarde iria ao shopping comprar um terno novo e uma jóia para a esposa; amanhã era dia das mães. Queria andar na praia...estava chovendo muito! Ligou a tevê por hábito. Notícias da chuva: alagamentos, engarrafamentos, arrastões, barracos destroçados...Um velho pedreiro chorava a perda da moradia. “Trabalho de uma vida”. Consolava-se que seu tudo era sua família; estava intacta. Deus fizera aquilo com ele. Desabafo infeliz de um momento de dor. Baixou a cabeça e remendou as palavras: clamou respeitosamente pela divindade. Talvez comprasse um Tucson igual ao do anúncio da tevê; estava um carrão. Final do ano, um cruzeiro até a Europa poderia lhe trazer a tranqüilidade. Stress de tanto trabalho. Voltou a atenção para o jornal; sob os escombros, a família soterrada de uma empregada doméstica. Móveis baratos despedaçados e a geladeira velha revirada na lama da rua do subúrbio desconhecido. Desligou a tevê e foi tomar um café. Adália estava atrasada; ainda não havia chegado para pôr a mesa...talvez devido à chuva. Pegou um iogurte, uma banana na fruteira e foi comer na mesa da varanda. No canteiro um bem-te-vi observador que cheirava as rosas denunciou sua presença no mundo e partiu alvoroçado.

Por Djalma Jacobina Neto

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Café da manhã

Primeiros raios de sol. D. Josefa já de pé preparava o café.
Patrões. Não deixava que nada faltasse à mesa para não desagradar seus patrões, que logo mais estariam ali.
De repente surgiram passos na escada àquela hora.
-Bom dia, senhora. Já de pé?
-Bom dia, Josefa; na verdade, nem dormi. Que noite péssima!
- A mesa ainda está incompleta. Não esperava a senhora tão cedo; vai querer suco ou café?
-Não sei; tanto faz. Aliás, prepare-me um chá calmante daqueles que só você sabe fazer.

Josefa notou a expressão de angústia e o rosto desfeito da sua senhora. Não era aquela criatura viva que descia as escadas cantarolando todas as manhãs. Por que mudara assim da água para o vinho? A empregada quis dar início a uma prosa, quem sabe, a patroa triste desabafasse, mas se conteve; não ousaria tamanho atrevimento. Na cozinha, tentou ligar os fatos em seu pensamento: enquanto vivia sua insônia na madrugada, Josefa ouviu passos ligeiros e desesperados no corredor e depois gemidos abafados. Sentiu que sua senhora sofria. Brigaram?! Não podia ser. Como?! Não houve discussão entre eles naquele quarto, ia com estes questionamentos quando se dirigia à sala levando na bandeja o precioso líquido para a sonâmbula.
Sala principal. Ela, debruçada sobre a mesa, tinha os olhos fixos na cesta de frutas. A ultima vez que mergulhara numa tristeza foi quando soube que não poderia dar ao marido um filho tão sonhado. Seria o fim do casamento? Ele, frente ao imenso espelho, dava os últimos ajustes na gravata.
Assim que serviu sua senhora Josefa virou-se para cumprimentá-lo:
-Bom dia ,senhor.
-Muito bom dia dona Josefa Maria, respondeu sorrindo, enquanto ajustava sua gravata de seda.
-Hoje vocês me surpreenderam tão cedo. Volto já com o café.
-Tudo bem. Hoje não tenho pressa, disse ele.
O marido resolveu sentar-se na cadeira do outro lado da mesa, ficando de frente para a mulher. Aquela distância impedia que esboçasse qualquer espécie de contato físico com ele.ali estaria seguro. Quando ergueu a cabeça,viu-a com o olhar agora fixado nele, e a sua mão direita mexia a xícara do chá ainda quente; talvez esse fosse seu ultimo recurso: o olhar. Mirava-o insistentemente como se ainda cobrasse dele: “vim em busca de amor”, mas ele continuava indiferente a tudo. Saboreava torrada.
O silêncio da sala tinha clima de velório, e a imagem daquela estatua viva diante dele o sufocava. Não suportou aquele ambiente e gritou Josefa para trazer o jornal. Enquanto o café não chegava, ele folheava as páginas, sem interesse; na verdade, não queria ler, a sua intenção era esconder-se naquele amontoado de papel. Como um flash, a cena dos dois na madrugada dominava seus pensamentos. Era uma guerra silenciosa.
Não suportou mais: o homem se levantou, verificou as horas e deu a última sacudida no terno. Resolvera não esperar o café. Precisava abandonar aquele espaço hostil; então tomou à pressas a pasta que estava sobre o sofá e se dirigiu à porta. Puxou a maçaneta, mas, antes de ganhar a rua , parou. Como dizia um velho amigo:”fazemos muitas paradas na vida”. Depois de remexer seus pertences, retirou um bloco de rascunhos e voltou ao assento da mesa. A mulher ainda tinha esperança. Ansiosa, viu seu marido escrever uma frase curta com letras bem expressivas , destacar a folha e deixar sobre a mesa o bilhete que dizia NÃO ME ESPERE PARA O JANTAR.
Por Alex Silva
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O UNIFORME



Até que enfim havia chegado seu novo uniforme; agora ele já era um tenente-coronel! Pensava consigo mesmo que seus cinquenta e cinco anos credenciavam-lhe a um pouco de vaidade na véspera do galarim militar. Pegou a farda nova pelo cabide e a dependurou no puxador da porta fechada do armário. Abriu a gaveta do passado e de lá retirou sua antiga e primeira vestimenta na caserna; ainda um reles tenente. Era assim naqueles tempos: chegava continente no quartel incontinente, orgulhoso da pátria, da vida, da carreira. “Passado augusto!” – pensou. Pendurou a farda velha na outra porta do armário; as duas perfiladas. Ele, de cueca, sentou-se pensativo e observador na poltrona que ficava na extremidade oposta do quarto. Enquanto mirava, absorto, os dois trajes, refletia. O país não era mais o mesmo; mudara de cor, de gente, de roupa, de moral. A farda velha tinha a tez desbotada de uma época de marcha dura. Tempo de farda, de pulso, de força. O uniforme recém-chegado era garboso, cheio de botões burocráticos e democráticos de um quartel digital e contido; os galões que enfeitavam os ombros se pareciam até com os das figuras manietadas de um vídeo game online. Olhou para si, para a cueca; precisava comprar uma nova para usar amanhã na parada do Sete de Setembro.
Por Djalma Jacobina Neto
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Sem espelho
(Esboço de uma teoria do humano sem alma)


Prezado senhor Jacobina,



Esta carta eu sei que não receberá. Não chegará em suas mãos por já não estar mais nesse mundo, e tampouco a receberia se ainda lhe restasse para além de seu corpo uma alma. Não lerá, portanto, as idéias que lhe são uma contraposição. Faço, desta forma, como o senhor faria e fez quando teve oportunidade de discurso. Não é vingança, creia. Gostaria apenas de registrar e perpetuar um discurso de conteúdo filosófico, mas de procedimento dogmático. Nesta carta, concentro pedaços de pretexto para minhas reflexões tomarem acento em tinta e papel. Não usurparia muito de seu tempo, se chegasse a lê-la.
Em primeiro lugar, suas idéias me chegaram pela boca de meu pai que as obteve de seu avô, meu bisavô, que por sua vez lhe foram legadas diretamente de um tio avô. Este homem presenciou seu discurso acerca da alma humana, e embora talvez eu não o conheça de modo fidedigno, considerando essa trajetória oral, arrisco-me ainda assim a contrapor-me às suas posições. Para tanto, o farei de modo análogo. Contarei uma história. Não-factual, contudo, porque não creio que os fatos sejam tão importantes quanto as descrições que fazemos deles. A essa altura, sei que estaria curioso para ler. Segue abaixo minha narrativa.

O que a metafísica ocidental nos legou foi um punhado inútil de supostos postulados a respeito do mundo sensível. Ela almejava falar do mundo de modo separado e determinador dele. Se dizemos que alguém é belo, a metafísica julgava ter a propriedade desse belo que se aplica ao substantivo em questão. O belo, nesse sentido, é também uma substância. Algo para além das nossas atribuições, que na verdade já está nas coisas independente de nossa visão acerca dela.
Com o dualismo das meditações metafísicas cartesianas eu/mundo, sujeito/objeto, que o senhor deveria conhecer bem, a alma ganhou uma notoriedade espetacular, pois tornou-se necessária. Cabia aos filósofos, a partir de então, investigar sua natureza, mas não a sua existência. Dentre as inúmeras descrições a respeito da alma humana surgiu a do senhor. Uma curiosíssima descrição, confesso, pois me parece mesmo uma antecipação de Freud, um pensador que não conheceu. Sua concepção de duas almas: interior e exterior não é muito distinta da concepção de ego e superego freudianos. Uma que diz respeito a como se conceber em sua relação consigo e a outra em sua relação com os outros. Na medida em que somos seres sociais, sua teoria, assim como a de Freud, me parece muito palatável.
O único problema, na minha opinião, é seu resquício metafísico. O termo alma, senhor Jacobina, é derivado do latim anima. É exatamente isso que o senhor pensaria se lesse estas palavras. Alma, desde Aristóteles, é o que anima certos seres, os chamados animais. Os seres inanimados, por sua vez, são as pedras, os mares, as nuvens etc. Ela possui um caráter determinador e subjacente. E graças à alma o homem é um ser superior a todo o resto. As descrições filosóficas que se utilizam do termo alma possuem todas resquícios metafísicos, na medida em que preservam a distinção entre eu e mundo. Alma é o que capta o mundo e que nos garante uma unidade, como queria Parmênides com seu Uno, diante de todas as diferenças que nos são impostas. É a alma que lhe permite dizer que o senhor se chama Jacobina, é um intelectual e tem uma teoria sobre a alma. Sem ela, o homem seria apenas uma rede contingente de crenças e desejos. Todavia, é exatamente isso que eu penso.
Não acredito que sejamos mais do que um feixe de impressões e idéias ou uma rede de crenças e desejos. Coisas das quais são preenchidas de mundo e não se separam dele nem mesmo para olhar para si. O que me faria pensar que tenho uma alma, algo mais profundo, mais significativo, mais determinador de mim do que meu córtex cerebral seria apenas minha maneira de lidar com minha própria finitude. Quem teve acesso a Darwin, a Marx, a Freud, a Jaques Monod, a Borges e, principalmente, a Richard Rorty não está tão disposto a se crer como algo superior ao mundo. Antes se vê como fruto do acaso. E a toda análise de si como algo contingente, sem essência, sem profundidade, sem destino, sem alma. Apenas como dotados de imaginação. A imaginação que lhe serviu para traçar um esboço de uma nova teoria da alma humana, e que me serviu para nega-la.
Alma, para mim, é algo que não precisamos ter, caro senhor Jacobina. Nada está para além de nossas relações sociais, morais ou para além de nossa imaginação. Da mesma forma que sua alma exterior se agarrou à imagem do “senhor alferes”, não posso dizer, por exemplo, de Alberto Caeiro ou de Mersault a quem nada se agarraram. Falar da alma humana, meu caro senhor, é falar de algo que todos devemos possuir independente de nossa situação social, moral, econômica, cultural. Ou seja, é falar do que não podemos.

Esperaria convencer-lhe e aguardaria respostas. Confesso que, depois de refletido, o pensamento parece ser um pássaro desesperado lutando na gaiola pela liberdade. É terrível a dor de mantê-lo preso. Minha carta sem destino, no fundo, só me serve de desânimo. O problema de escrever é que sempre se pressupõe que a afirmação desta atividade não pode ser feita por quem faz, mas pelo outro. No entanto, e quando esse outro pertence a outro tempo que não o meu? Por fim, mesmo sendo nós dois dogmáticos, adoraria conversar com o senhor.

Por Tiago Medeiros