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Sem espelho
(Esboço de uma teoria do humano sem alma)


Prezado senhor Jacobina,



Esta carta eu sei que não receberá. Não chegará em suas mãos por já não estar mais nesse mundo, e tampouco a receberia se ainda lhe restasse para além de seu corpo uma alma. Não lerá, portanto, as idéias que lhe são uma contraposição. Faço, desta forma, como o senhor faria e fez quando teve oportunidade de discurso. Não é vingança, creia. Gostaria apenas de registrar e perpetuar um discurso de conteúdo filosófico, mas de procedimento dogmático. Nesta carta, concentro pedaços de pretexto para minhas reflexões tomarem acento em tinta e papel. Não usurparia muito de seu tempo, se chegasse a lê-la.
Em primeiro lugar, suas idéias me chegaram pela boca de meu pai que as obteve de seu avô, meu bisavô, que por sua vez lhe foram legadas diretamente de um tio avô. Este homem presenciou seu discurso acerca da alma humana, e embora talvez eu não o conheça de modo fidedigno, considerando essa trajetória oral, arrisco-me ainda assim a contrapor-me às suas posições. Para tanto, o farei de modo análogo. Contarei uma história. Não-factual, contudo, porque não creio que os fatos sejam tão importantes quanto as descrições que fazemos deles. A essa altura, sei que estaria curioso para ler. Segue abaixo minha narrativa.

O que a metafísica ocidental nos legou foi um punhado inútil de supostos postulados a respeito do mundo sensível. Ela almejava falar do mundo de modo separado e determinador dele. Se dizemos que alguém é belo, a metafísica julgava ter a propriedade desse belo que se aplica ao substantivo em questão. O belo, nesse sentido, é também uma substância. Algo para além das nossas atribuições, que na verdade já está nas coisas independente de nossa visão acerca dela.
Com o dualismo das meditações metafísicas cartesianas eu/mundo, sujeito/objeto, que o senhor deveria conhecer bem, a alma ganhou uma notoriedade espetacular, pois tornou-se necessária. Cabia aos filósofos, a partir de então, investigar sua natureza, mas não a sua existência. Dentre as inúmeras descrições a respeito da alma humana surgiu a do senhor. Uma curiosíssima descrição, confesso, pois me parece mesmo uma antecipação de Freud, um pensador que não conheceu. Sua concepção de duas almas: interior e exterior não é muito distinta da concepção de ego e superego freudianos. Uma que diz respeito a como se conceber em sua relação consigo e a outra em sua relação com os outros. Na medida em que somos seres sociais, sua teoria, assim como a de Freud, me parece muito palatável.
O único problema, na minha opinião, é seu resquício metafísico. O termo alma, senhor Jacobina, é derivado do latim anima. É exatamente isso que o senhor pensaria se lesse estas palavras. Alma, desde Aristóteles, é o que anima certos seres, os chamados animais. Os seres inanimados, por sua vez, são as pedras, os mares, as nuvens etc. Ela possui um caráter determinador e subjacente. E graças à alma o homem é um ser superior a todo o resto. As descrições filosóficas que se utilizam do termo alma possuem todas resquícios metafísicos, na medida em que preservam a distinção entre eu e mundo. Alma é o que capta o mundo e que nos garante uma unidade, como queria Parmênides com seu Uno, diante de todas as diferenças que nos são impostas. É a alma que lhe permite dizer que o senhor se chama Jacobina, é um intelectual e tem uma teoria sobre a alma. Sem ela, o homem seria apenas uma rede contingente de crenças e desejos. Todavia, é exatamente isso que eu penso.
Não acredito que sejamos mais do que um feixe de impressões e idéias ou uma rede de crenças e desejos. Coisas das quais são preenchidas de mundo e não se separam dele nem mesmo para olhar para si. O que me faria pensar que tenho uma alma, algo mais profundo, mais significativo, mais determinador de mim do que meu córtex cerebral seria apenas minha maneira de lidar com minha própria finitude. Quem teve acesso a Darwin, a Marx, a Freud, a Jaques Monod, a Borges e, principalmente, a Richard Rorty não está tão disposto a se crer como algo superior ao mundo. Antes se vê como fruto do acaso. E a toda análise de si como algo contingente, sem essência, sem profundidade, sem destino, sem alma. Apenas como dotados de imaginação. A imaginação que lhe serviu para traçar um esboço de uma nova teoria da alma humana, e que me serviu para nega-la.
Alma, para mim, é algo que não precisamos ter, caro senhor Jacobina. Nada está para além de nossas relações sociais, morais ou para além de nossa imaginação. Da mesma forma que sua alma exterior se agarrou à imagem do “senhor alferes”, não posso dizer, por exemplo, de Alberto Caeiro ou de Mersault a quem nada se agarraram. Falar da alma humana, meu caro senhor, é falar de algo que todos devemos possuir independente de nossa situação social, moral, econômica, cultural. Ou seja, é falar do que não podemos.

Esperaria convencer-lhe e aguardaria respostas. Confesso que, depois de refletido, o pensamento parece ser um pássaro desesperado lutando na gaiola pela liberdade. É terrível a dor de mantê-lo preso. Minha carta sem destino, no fundo, só me serve de desânimo. O problema de escrever é que sempre se pressupõe que a afirmação desta atividade não pode ser feita por quem faz, mas pelo outro. No entanto, e quando esse outro pertence a outro tempo que não o meu? Por fim, mesmo sendo nós dois dogmáticos, adoraria conversar com o senhor.

Por Tiago Medeiros
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