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BEM TE VI



Naquela manhã de sábado não havia acordado bem; uma rede de águas fluía em sua cabeça. Já não era tão assim a paz que pensava ter; as palavras lhe vinham ferinas e sem nexo. Ao lado, a mulher dormia no conforto do ar-condicionado. A vida...a vida que o tempo lhe rapinava. Filhos crescidos mundo afora e a razão perdida de ser. Ele ansioso por algo mais. O que poderia saciar aquela angústia de existir? A dor de cabeça incomodava... um analgésico já não servia; não era uma dor precisa, era uma dor do tempo. Levantou-se e cobriu a filha mais nova. Tentou se explicar pelo nada que acontecia sempre para si. Havia o amor em firulas dobradas; mola de geração ou algo de vida? Já era cúmplice da existência; contrato feito na juventude. Construíra uma vida e hoje era prisioneiro do seu próprio desconhecer no passado. Passos solenes caminhados com uma soberba ilusória. Agora ali, a espera de quê? Dor atroz, não física; uma dor de vazio, de completude vazia. Pensou em trocar o carro novo por um mais imponente. Já havia feito isso várias vezes; a que o levava a imponência do carro? Planejou, também, trocar o belo apartamento por aquele mais moderno e luxuoso...a mulher já havia lhe realçado a importância de se ter qualidade de vida. Piscina com raia, espaço fitness, brinquedoteca, movie room, espaço gourmet, solarium...Mais tarde iria ao shopping comprar um terno novo e uma jóia para a esposa; amanhã era dia das mães. Queria andar na praia...estava chovendo muito! Ligou a tevê por hábito. Notícias da chuva: alagamentos, engarrafamentos, arrastões, barracos destroçados...Um velho pedreiro chorava a perda da moradia. “Trabalho de uma vida”. Consolava-se que seu tudo era sua família; estava intacta. Deus fizera aquilo com ele. Desabafo infeliz de um momento de dor. Baixou a cabeça e remendou as palavras: clamou respeitosamente pela divindade. Talvez comprasse um Tucson igual ao do anúncio da tevê; estava um carrão. Final do ano, um cruzeiro até a Europa poderia lhe trazer a tranqüilidade. Stress de tanto trabalho. Voltou a atenção para o jornal; sob os escombros, a família soterrada de uma empregada doméstica. Móveis baratos despedaçados e a geladeira velha revirada na lama da rua do subúrbio desconhecido. Desligou a tevê e foi tomar um café. Adália estava atrasada; ainda não havia chegado para pôr a mesa...talvez devido à chuva. Pegou um iogurte, uma banana na fruteira e foi comer na mesa da varanda. No canteiro um bem-te-vi observador que cheirava as rosas denunciou sua presença no mundo e partiu alvoroçado.

Por Djalma Jacobina Neto

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