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Da boca contrita


Esfregou os olhos com as costas das mãos, lutando para se livrar do resto de sonho que lhe pendia das pálpebras. Testou os músculos, ainda dormentes, descobrindo, sem muita surpresa, que o cansaço e as dores ainda persistiam; corria da penumbra da noite como corria da imensidão do dia. Esticou o corpo, apoiando os pés no ferro de frio perene que marcava o fim da cama, “ou ali seria o começo?” Nunca sabia de onde começavam e terminavam as coisas.
Já não era mais menina. Subitamente, a vida explodiu entre seus dedos, e sem aviso prévio passou a trilhar os caminhos de adulta. Não tardou a se machucar: Descobriu que o mundo era maior do que aquele abarcado pelos seus olhos. Para um mundo tão grande, julgou-se infinitamente pequena. A agonia e inquietação passaram a ser as únicas conhecidas que encontrava em cada esquina. Malditas esquinas, tudo tão familiar! Os caminhos que antes a conduziam, agora a aprisionavam. Os sonhos, eternos sem-terra, alojaram-se no céu estrelado de sua boca, moradia só habitável na juventude, quando o amargo dos anos ainda não contaminou tudo. Mas os sonhos eram tantos e se multiplicavam tão rapidamente que, antes que pudesse impedir, teve sua garganta ocupada, criando um embolo que lhe dificultava a respiração. Por excesso de sonhos, passou a arfar. Logo, viu os antigos companheiros de caminhada se tornarem estranhos. Em bifurcações diversas, as mãos se desenlaçaram e os olhares, quando se encontravam, não se reconheciam mais. Para onde eles caminhavam, ela não queria ir. Para o destino que traçava para si, não queria companhia. Entre o passado morto e sepultado, e o futuro ainda embrião, abriu-se espaço para a solidão.
Ela, que antes de acostumara ao dia-a-dia linear e simples, via-se impossibilitada de alimentar a vida. Desejou desfazer-se dos inúmeros cortes que teimavam em não cicatrizar, quis abandonar as bagagens, voltar a ser feto. Ela buscava esterilidade e indiferença, os astros devolviam-lhe chibatadas e queimaduras. Expulsa de si, enxergou-se retirante sem rumo, mirando todo o mundo em busca das respostas para seu íntimo. Criava unhas para cravar algo em que pudesse se apoiar, via tudo em que sempre acreditou, se desfazer em pó e nada mais; em sua íntima desordem, precia o desespero. Trilhou todos os caminhos tortos que é de direito a todo homem e mulher que nessa terra finca os pés, sem encontrar em nenhum deles o viço necessário para manter-se viva. De certeza, só as horas terríveis que passava em companhia do nada e do silêncio, a casa vazia sufocava, cheia, enraivecida. Não ousou pedir misericórdia ao Deus-pai-todo-poderoso, sentia-se indigna dos pedidos de fé, não iria confidenciar a Ele o mal-estar de sua vida, não pretendia desaponta-lo, como fizera com si mesma. Liquefez-se e entre os dedos, deixou-se escapar; ela só era, que não a pedissem para estar.
No meio de tanto barulho e confusão, sentiu o cansaço escorre-lhe dos ombros, sentiu os braços enfraquecerem e a carne das pernas tremerem, tamanho o peso que carregava. Uma tonelada de desassossego.
De batalha em batalha, o guerreiro descansa. Deitou o corpo na cama e cobriu-se displicente, não há armadura quando o inimigo só se vê no espelho. Dormiu, um sono de horas, um sono inquieto. Agora, findo o espanto do sonho, o teste da dor e já desperta, fitava o teto. Curvou o tórax sobre o corpo, em um instante da eternidade, um silvo agudo no ouvido. Girou o corpo e com um suspiro breve, tocou os pés no chão.

Por Pamela Moura
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